À primeira vista, o nome engana: Ikoyi.
Parece japonês e há orientais por toda parte: cozinheiros, garçons e clientes, mas não é: Ikoyi é o nome de uma cidade na Nigéria.
Ninguém consegue dar uma explicação breve do conceito, que seria mais ou menos o seguinte: um restaurante londrino de comida inspirada no oeste da África, mas com especiarias do mundo todo, com foco na micro-sazonalidade de produtos ingleses, misturando “mar e montanha” com uso de carnes maturadas.
Parece confuso? Mas funciona…
Funcionou tanto que, agora em 2025, além das duas estrelas Michelin, acabaram de alcançar o 15º melhor lugar no guia 50Best, a maior subida de posições do ranking, em relação a 2024.
O Ikoyi fica no térreo de um edifício comercial de arquitetura brutalista (voltaram à moda). Passando a câmara de maturação com carnes, aves e peixes, bem na entrada, o salão é um vão em tons neutros, com mesas desprovidas de grandes enfeites com foco na cozinha aberta, no melhor estilo “olhe para a comida”.
Quando as descrições começam, você jura que vai dar muito errado. Veja bem:
Começamos com um caldo feito de duas infusões: uma primeira feita de asas de galinha caramelizadas com vegetais e especiarias, e uma segunda, com ervas. No fundo do copo, três sólidos: um shitake glaceado com manteiga de anchovas, um triângulo de beterraba amarela e um naco de pombo branco em picles. No topo, flores de cogumelo e de funcho. Por fim, um pingo de óleo de pimenta gola, de Serra Leoa. E juro… essa escola de samba desfilou lindamente nesse pequeno copinho aí.
Depois, veio uma lula confit numa base de arroz fermentado, enrolada em alga nori caramelizada, para abocanhar de uma só vez. Não sei bem como fizeram para aquilo tudo parecer uma pasta única, que se derretia na boca, mas cheia de sabores escondidos, que se alternavam. Sensacional.
O prato de peixes vinha com uma brincadeira de micro molhos, bem diferentes: um era ‘tonnato’ com cheddar e limão, outro era um leite de avelã e por fim um molho de folhas de cassis. Eram um bacalhau de Cornwall e um pregado com maturação de uma semana, em tempura, lambuzados com pimentas fermentadas e salpicados com folhas de mizuna (como uma rúcula selvagem mais picante) sobre uma emulsão de crustáceos e melão. Evolução, alegorias e adereços, nota 10.
E então veio a galinha d’angola.
Lembrei de um cozinheiro cearense, que contava que na sua infância e adolescência, as aves eram como uma praga. Apareciam por todo lado e metia-lhes balas de chumbinho enquanto corriam pelo seu quintal, o que tornava a vida mais difícil na hora de comer, mas era prato cotidiano, já que abundantes no seu Estado.
Me perguntei a razão de não mantermos o hábito no Brasil (sem chumbinho, por gentileza) quando chegou uma galinha d’angola cozida à perfeição, com cogumelos girolles, creme de lagosta, cenouras em picles e arroz jollof (delicioso e fora da foto), uma preparação que existe desde 1300, no Oeste da África, feita com especiarias, chilis e tomates.
Ao fim da etapa salgada, já tinha a certeza de que se tratava de uma refeição extraordinária, quando o garçom perguntou: “algum preferido?”, e eu não soube dizer. Só sabia que tinha gemido nos três.
As sobremesas foram interessantes, mas não tão marcantes, especialmente as que levavam alguma massa, sempre um pouco pesada.
Gostei especialmente da primeira: um sorbet de cereja com noz de kola e trezentas coisas: era açaí, biscoito, limão, cravo, babaganoush (purê de berinjela com tahine defumado, e ali, doce) além de um cítrico que não entendi, um “esmalte” de cereja, creme com baunilha do taiti e flor de sabugueiro em conserva. Em cima, cerejas glaceadas e azedinha com óleo de amêndoas.
Ufa! Deu certo.
Depois, um sorvete de manteiga queimada sobre um bolo de ameixa com gengibre e cravo e um caramelo de café, gengibre e cravo. Por cima, mousse de pimenta indiana salpicada de pó de cassis.
Num pratinho, duas sobremesas: um melão honeydew glaceado com mel, enfeitado com açafrão e flor de coentro, que gostei bastante; e uma ganache de chocolate com pudim de cereja, baunilha do taiti, manteiga queimada, amoras pretas e brancas e pimenta vermelha longa.
A harmonização é um assunto à parte e funcionou muito bem. Pode ser feita com vinho, sake ou chá. Pedi vinho e o marido, sake. Tomei ambos a título de “afinal eu escrevo sobre comida” e ambos funcionaram bem com a comida.
Como destaque, o sake que harmonizou com a sobremesa. No sabor, é doce, mas tem acidez para compensar, e vem com notas malucas de shiitake, castanhas, mel, além de ser muito lácteo. Uma bomba de umami. O sabor inusitado vem de um produtor que levou a fermentação ao limite. O sake Tsuchida 99 usa 99% de koji (o arroz cozido inoculado com o fungo que ajuda na fermentação) e só 1% de arroz, quando a proporção normal é de uns 20% de koji. É uma tentativa de fazer sake como antigamente, pelo método Kioto, tipo de fermentação ortodoxa que existe desde 1700.
Quando descrevi o conceito e um prato para uma amiga, ouvi: “Credo! Melhor não saber!”.
Para alguns, talvez…, mas garanto que tudo está na medida certa. Todas as especiarias do cardápio “se dão muito bem, obrigada”, e as notas picantes tinham sempre razão de ser.
Jeremy Chan, o chef, e seu sócio Iré Hassan-Odukale, estão de parabéns. Ikoyi é um grande (e original) restaurante que quer fazer comida boa e não está nem aí para explicar como consegue.